Em decorrência da pandemia do coronavírus, em maio deste ano foi publicada lei complementar que, dentre outras normativas, suspendia a contagem de tempo de serviço dos servidores públicos até o final do ano seguinte. A Lei Complementar de nº 173/2020 está relacionada ao Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus, e impactou o funcionamento dos órgãos públicos em todo o país.
No artigo 8º inciso IX do texto, fica decretado que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios em estado de calamidade pública são proibidos de computar o tempo de serviço dos seus servidores até 31 de dezembro de 2021, para fins de concessão de adicionais temporais e licença-prêmio. Ocorre que a referida previsão extrapolou a competência legislativa da União. Isso significa que, a pretexto de legislar sobre “normas gerais” de finanças, a lei disciplina de maneira muito específica o sistema remuneratório de servidores estaduais, violando o pacto federativo.
Esse entendimento é do juiz José Manuel Ferreira Filho, da Vara do Juizado Especial Cível e Criminal de Votuporanga (SP). O magistrado determinou que o estado de São Paulo deve continuar a contagem do tempo de serviço efetivamente prestado por seus servidores para a obtenção de adicionais temporais, bem como da sexta-parte e da licença-prêmio durante o período compreendido de 28 de maio de 2020 até 31 de dezembro de 2021.
A decisão foi dada em uma ação ajuizada por um servidor público estadual, que questionou a aplicabilidade do referido artigo da lei acima descrita, no âmbito do estado de São Paulo. De acordo com o juiz, a pretexto de legislar sobre normas gerais de finanças públicas na pandemia, “a União acabou dispondo de maneira muito específica sobre sistema remuneratório dos servidores dos Estados que a ela não compete sob pena de violação do pacto federativo estabelecido como princípio fundamental em nossa Constituição, inclusive como cláusula pétrea (CF, artigo 60, §4º, I)”.
O magistrado afirmou ainda que os entes federativos possuem autonomia dentro da República, inclusive diante da previsão expressa contida no artigo 18 da Constituição Federal. Sendo assim, cada estado é organizado e regido por sua própria Constituição e leis, conforme inteligência do artigo 25. Completou ainda que “nesse sentido, estabelece a nossa Constituição que cada ente federativo deve dispor sobre a remuneração dos respectivos servidores públicos com observância da iniciativa legislativa em cada caso”.
O juiz José Manuel Ferreira Filho ressaltou que o estado de São Paulo e seus municípios já possuem legislação específica a respeito do direito remuneratório de seus servidores públicos, a qual prevê, à sua maneira, forma e regulamentação acerca do direito ao recebimento de adicionais temporais com base no tempo de serviço e, eventualmente, licença-prêmio.
De acordo com ele, “não pode a Lei Complementar Federal suspender ou suprimir direitos remuneratórios dos servidores dos estados e municípios, especialmente aqueles já adquiridos com base na legislação local vigente e que, portanto, não correspondem a aumentos de salários ou reajustes”.
O magistrado justificou que se trata de inconstitucionalidade material, na medida em que o conteúdo da lei federal viola um princípio constitucional fundamental da República, consistente na forma federativa de estado, “segundo o qual cada ente federativo tem autonomia nos termos da Constituição para se organizar política e administrativamente, o que inclui legislar sobre o direito remuneratório de seus servidores”.
Ao final, o juiz ressaltou em sua sentença que o direito ao adicional com base no tempo de serviço efetivamente prestado, assim como a sexta-parte, é expressamente assegurado pela Constituição de São Paulo e concedido no mínimo por quinquênio e sem limitação. De modo que, em tese, apenas por emenda à Constituição Estadual tal direito poderia ser mitigado.
A Procuradoria do Estado de São Paulo interpôs recurso de apelação, posto que, claramente, discorda da sentença ora proferida. Após a apresentação das contrarrazões, o processo foi remetido ao Tribunal de Justiça de São Paulo para julgamento do recurso.