Se para a maior parte dos setores da economia a pandemia virou sinônimo de crise, para empresas que operam online o cenário se mostrou o oposto. Com as medidas de distanciamento físico e fechamento do comércio adotadas para a contenção da disseminação do COVID-19, a internet consolidou-se como o principal — se não o único —, meio de interação social no cotidiano das pessoas que habitam os centros urbanos. A recomendação para evitar sair de casa aumentou o tempo de navegação na rede e, consequentemente, a demanda por produtos e serviços contratados via internet. Setores de e-commerce, delivery, e streaming, registraram um crescimento significativo, apesar do panorama de recessão econômica.
Mesmo com o cenário de desemprego e consequente diminuição do poder de compra, o crescimento do consumo online provocou melhorias no setor. Empresas que antes não operavam no ambiente digital encontraram na internet uma saída para gerar receita nesse período de paralisação econômica. Plataformas e aplicativos que já existiam se modernizaram para atender às novas demandas.
Diante do aumento considerável dessas demandas de consumo durante o isolamento social, fez-se necessário estabelecer um regramento. Para tanto, foi sancionada, em 10 de junho, a Lei nº 14.010, que instituiu um Regime Jurídico Emergencial e Transitório (RJET) para as relações privadas.
O Código de Defesa do Consumidor garante o direito de arrependimento de compra, no prazo de 7 dias do recebimento do produto, sempre que a compra for realizada fora do estabelecimento comercial, como é o caso das compras feitas pela internet.
Porém, o artigo 8º da Lei nº 14.010 suspendeu os efeitos desse direito:
Art. 8º: Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos.
Um dos argumentos para a suspensão do direito de arrependimento na pandemia é o de eliminar uma possível aglomeração de pessoas e sua exposição à contaminação. Com a impossibilidade de devolução do produto, os consumidores não terão que sair de casa para ir à loja ou aos correios, mantendo, enfim, o distanciamento social recomendado.
Há ainda um segundo motivo, de ordem econômica, para os serviços de delivery, que tem o intuito de proporcionar um equilíbrio nas relações firmadas entre fornecedores e consumidores. A lei visa mitigar os possíveis riscos dos fornecedores que vêm trabalhando com entrega à domicílio, mesmo durante a determinação de isolamento social. Foi observada uma preocupação com a manutenção do fluxo de caixa dos fornecedores, de modo a atenuar a intensa crise financeira que ameaça as micro e pequenas empresas, em razão do encolhimento do mercado.
É importante registrar que o direito de arrependimento de compra, ou prazo de reflexão, previsto no Código de Defesa do Consumidor, permite que o consumidor desista do contrato no prazo de até 7 dias, sem qualquer justificativa, sempre que a aquisição de produtos e serviços ocorrer pela internet. Nesse caso, o objetivo da Lei é proteger o consumidor que até então não teve contato com o produto, sem oportunidade de examiná-lo. Visa, ainda, resguardar ao usuário a possibilidade de desistência das compras feitas por impulso.
Assim, a Lei não exclui a possibilidade de devolução de um produto durante o período da pandemia. O que se pretende com o regramento é evitar a recusa imotivada nos casos do serviço de delivery, em razão das suas peculiaridades. Com relação à entrega de comida e de medicamentos, a recusa imotivada pode significar a quebra da legítima expectativa criada pela boa-fé, impondo ao fornecedor um ônus descabido.
Considerando os diversos aspectos envolvidos na discussão, há que se encontrar um equilíbrio. De um lado, não se pode garantir o direito de arrependimento de compra em toda e qualquer circunstância em que o produto tenha sido adquirido fora do estabelecimento comercial. Do outro, o consumidor não deve ser prejudicado, uma vez que tem insculpida na Constituição Federal a garantia da defesa de seus direitos.
Conclui-se, portanto, que a Lei nº 14.010/20 apresenta uma solução temporária em relação ao direito de arrependimento de compra, aparentemente proporcional e adequada tanto para o consumidor quanto para o fornecedor, tendo em visto o cenário atípico do momento. É importante destacar que o direito deve permanecer estável, mesmo diante de um panorama adverso de pandemia e calamidade pública. Em um tempo onde impera a sensação de insegurança, é preciso serenidade e equilíbrio para que os extremos sejam evitados: nem a supressão de direitos tão importantes para os consumidores, e nem oportunismos exacerbados.